26/01/2011 13:14

AINDA SOBRE A PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO INFIEL

AINDA SOBRE A PRISÃO CIVIL DO DEPOSITÁRIO INFIEL

Antônio Marcos Batista Silva
Advogado - Pós-Graduando em Direitos Humanos, Teoria e Filosofia do Direito, pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG)



Direito Civil
INTEGRAÇÃO NORMATIVA

 

Mesmo após a edição da súmula vinculante de n.º 25 pelo Supremo Tribunal Federal, ainda causa celeuma nos meios acadêmico e forense a figura famigerada da Prisão Civil do Depositário Infiel.

Não nos causa espanto, tendo em vista a discussão ainda presente no universo jurídico sobre a própria validade das súmulas vinculantes. No entanto, essa última questão não será alvo desta abordagem.

Resta sabermos sobre a interligação entre o art. 652 de nosso novel diploma cível, o art. 5º, inciso LXVII de nossa Constituição Republicana e o polêmico Pacto de San José da Costa Rica, a fim de buscarmos elucidar a (in) validade do instituto jurídico referido.

Inicialmente, antes de adentrar-se ao mérito da prisão civil propriamente dita, deve-se verificar quanto à natureza da integração do Pacto de San José ao ordenamento jurídico brasileiro. Em um posicionamento extremado, alguns autores defendem que o mesmo receberia o status de Emenda à Constituição, mesmo tendo sido ratificado pelo Brasil em 1992, data bem anterior à EC n.º 45/2004, a qual acresceu o parágrafo 3º no art. 5º de nossa Carta Constitucional, o qual prevê: “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”. Ademais, mesmo que o melhor entendimento fosse favorável à retroação da nova disposição constitucional, para atingir o tratado na década de 90, a aprovação do texto àquela época não obteve o quórum especial ali descrito.

O STF, em um timbre mais moderado, defendeu o status de norma supralegal, ou seja, inferior à Constituição Federal, no entanto, superior à nossas leis ordinárias. Esta posição deliberadamente nos causa estranheza, pois nossa Corte Suprema, de certa forma, sem alicerces constitucionais, tenciona indiretamente e, mesmo que, inconscientemente, alterar a consagrada hierarquia das normas no direito brasileiro, insculpida no art. 59 de nossa Carta Constitucional.

As normas de direito internacional, sejam elas costumeiras ou mesmo consolidadas em pactos, quando inerentes às relações entre os Estados assumem uma perspectiva de supralegalidade, no entanto, ao tratarmos da incorporação ao ordenamento pátrio dos textos afetos às relações dos sujeitos internos, não se vislumbra tal possibilidade. A hierarquia das normas assume uma base sólida em nossa cultura jurídica e não comporta divagações interpretativas, quanto mais uma tentativa de enquadramento sui generis.

Por outro lado, via de regra, a quase totalidade dos defensores da licitude da prisão civil do depositário infiel, tendem a considerar o pacto como mera lei ordinária. Ademais, para estes cultores do direito, como lei ordinária, o Pacto de San José teria revogado o art. 1.287 do Código Civil de 1.916, pois afinal lex posterior derogat priori. No entanto, com o advento do diploma cível de 2.002, seu art. 652 novamente regulamentaria o Inciso LXVII do art. 5º da Constituição, permitindo a prisão do depositário infiel, o que não nos parece a melhor solução.

Tendo em vista o constitucionalismo contemporâneo, de onde extraímos conceitos importantes, como a distinção entre Constituição Formal e Constituição Material, acreditamos que o Pacto de San José tenha ingressado em nosso ordenamento, mesmo que por uma via um tanto oblíqua, com status constitucional.

Quando o Poder Constituinte prescreveu no parágrafo 2º do art. 5º que “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”, criou-se uma porta de entrada para disposições de caráter constitucional. Também se encontra amparo no conceito moderno de Constituição Material, o qual preconiza que possam existir normas fora da Corpo da Constituição que nem por isso perdem a sua natureza constitucional, como as que estabeleçam direitos fundamentais.

Destarte, por força do parágrafo 2º do art. 5º da Constituição, o texto do tratado de San José sobre direitos humanos, mais especificamente a vedação à prisão civil fora dos casos de débitos alimentícios, fora incorporado com caráter constitucional. Uma vez assimilada pelo ordenamento pátrio nesta especial condição, tal norma deve ser tratada com toda higidez inerente ao texto constitucional.

A despeito do parágrafo 3º, acrescido pela EC 45, trazer procedimento específico para os novos tratados, àquela época prevalecia o aspecto mais amplo do parágrafo 2º, o qual não limitava a integração constitucional ao aspecto formal do rito e quórum para aprovação no Congresso Nacional, mas, apenas ao critério material. Versando o tratado sobre direitos e garantias fundamentais, seguindo o processo legal de ratificação e regulamentação legislativa vigente à época, automaticamente estava incorporado à nossa Constituição. A correlação entre os referidos parágrafos (2º e 3º), também intrincada, não será objeto da presente abordagem.

Resolvida a natureza da incorporação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, deve-se ponderar quanto à situação posterior do Inciso LXVII, o qual previa a possibilidade da prisão civil do depositário infiel: “não haverá prisão civil por dívida, salvo a do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”.

Por força do art. 60, parágrafo 4º, Inciso IV, de nossa Carta Maior, as disposições referentes a direitos e garantias individuais constituem cláusulas pétreas e bem por isso não podem ser revogadas. Destarte, erigi-se outra questão polêmica, pois se a norma permissiva não foi revogada, e, tendo sido incorporada outra norma de natureza proibitiva, estaríamos então diante de uma antinomia jurídica no plano constitucional¿

Acreditamos que a resposta seja negativa. As normas jurídicas, consoante a doutrina do inexorável mestre NORBERTO BOBBIO, de forma simplista, podem ser classificadas em permissivas, proibitivas e obrigatórias. Assim, o texto constitucional constante do Inciso LXVII do art. 5º, não estabelece um comando obrigatório, determinando que em todo caso de depositário infiel, o resultado do silogismo seja a respectiva prisão.

A referida norma jurídica é permissiva e sua regulamentação, esta sim de caráter obrigatório, estava prevista no art. 1.287 do Código Civil Bevilacqua e mais recentemente no art. 652 do Código Reale. Com a incorporação do Pacto de San José, o art. 1.287 foi tacitamente revogado e, o art. 652 do novel diploma ingressou no ordenamento completamente eivado da mais pura inconstitucionalidade.

Por outro lado, devemos atentar quanto à finalidade efetiva do texto insculpido no Inciso LXVII, o qual possui o condão de proibir, em regra, a prisão civil no ordenamento pátrio. Apenas elenca os casos de exceção à regra geral, contudo, não obriga de per si que a prisão seja concretizada. Trata-se de uma norma constitucional de eficácia limitada que, por si mesma, não produz efeitos no mundo dos fatos.

Por ausência de regulamentação pela superveniência do texto de caráter constitucional posterior, mesmo não tendo ocorrido a revogação do Inciso LXVII do art. 5º da Constituição Federal, podemos falar em sua inaplicabilidade por perda de eficácia, ou mesmo na paralisação de seus efeitos como sustentam alguns doutrinadores.

Destarte, conclui-se pela incorporação do Pacto de San José da Costa Rica com status de texto constitucional no ordenamento jurídico brasileiro, bem como pela inconstitucionalidade do art. 652 do Código Civil e pela inaplicabilidade do Inciso LXVII do art. 5º da Constituição Federal, culminando, por fim, com a vedação constitucional da prisão civil do depositário infiel e com a confirmação da Súmula Vinculante de n.º 25, acertadamente proferida pelo Supremo Tribunal Federal, ainda que sua fundamentação não seja a mais escorreita.

 

Publicação: 30 de janeiro de 2.011 - Informativo Jurídico ADV COAD - N.º 04/2011 - Pg. 57 - 59. Versão resumida:  Jornal Estado de Minas – Caderno Direito e Justiça – 11 de junho de 2.011 – Pg. 08.

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